A vida da
vereadora mais votada do Brasil em 2020 já foi marcada por violências das mais
cruéis. Ainda adolescente, foi expulsa de casa e precisou viver nas ruas.
Quando refez os laços familiares, foi em direção à política. Hoje, figura na
lista das lideranças capazes de transformar o mundo
Um artigo na Constituição
impede Erika Hilton de se lançar candidata a vice-governadora
do estado “locomotiva” do Brasil: ela ainda não tem, nem terá nas eleições de
outubro de 2022, a idade mínima para o feito, que é de 30 anos. “Todos querem
que eu venha vice de [Guilherme] Boulos para o governo de
São Paulo, mas sou muito jovem pra isso”, justifica a vereadora do PSOL, aos 28
anos.
Mas aceitaria se pudesse? “Talvez
sim. Mas não olho para o Executivo como uma vontade. Gosto muito mais do Poder
Legislativo. Meu desejo é ser senadora do Brasil”, responde de cabeça erguida a
primeira travesti a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo.
Você leu corretamente, travesti.
É com essa palavra que Erika pede para ser identificada, e não com “mulher
transgênero ou transexual”, em qualquer sala em que esteja. Ela explica que o
termo “transvestigênere”, cunhado pela própria, seria ainda mais adequado, pois
inclui mulheres e homens trans e pessoas não binárias.
Fazer questão de ser tratada como
travesti é sobre posicionamento. Além do mais, para ela, ser a primeira
travesti entre os vereadores de São Paulo não é algo que deva ser lido apenas
“como um grande feito, fruto da luta das mulheres transexuais e travestis pela
ocupação dos espaços”. Erika também enxerga o lugar inédito que ocupa como uma
denúncia que demonstra o quanto a sociedade ainda é transfóbica, já que poucas
iguais a ela estão nos espaços de poder.
“Ser a primeira em 2020 mostra
que as que vieram antes de mim não puderam chegar lá. Então, vejo isso como
denúncia gravíssima do apagamento e da violência que acometem a nossa
existência.”
No último ano, foram diversas as manifestações que apontam para o seu poder de
influência. Em novembro de 2020, recebeu 50.508 votos, sendo a mulher mais
votada para a vereança no país inteiro naquele pleito. Em março de 2021, foi
nomeada presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara.
Prestes a completar um ano de
mandato, passou a presidir a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da
Violência contra Pessoas Trans e Travestis, instalada em setembro na Câmara
Municipal. Em outubro, recebeu o prêmio Most Influential People of African
Descent (Mipad), apoiado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que
reconhece as pessoas negras mais influentes do mundo.
A parlamentar foi a única
brasileira na categoria Política e Governança. Ao seu lado, estão outras 24
figuras públicas de países como Nigéria, Estados Unidos, Gana, Austrália,
México e Canadá. Nesse mesmo mês, foi lembrada pela revista Time como uma das
grandes líderes da próxima geração numa lista de 20 pessoas.
A capacidade de fazer barulho, entretanto, já se manifestava antes mesmo de seu
nome se tornar público. Em 2015, quando vivia em Itu, cidade do interior
paulista em que passou a adolescência, travou uma batalha contra uma empresa de
transporte para que não fosse mais identificada e tratada por seu nome de
batismo. Fez um abaixo-assinado na plataforma Change.org, relatando a
dificuldade de incluir seu nome social no vale-transporte. Foram 6.175
assinaturas e conseguiu a alteração pela Viação Itu. Com a ação, chamou atenção
e foi convidada a se filiar ao PSOL.
Apesar da ascensão relâmpago na política institucional – sua estreia se deu em
2018 com a Mandata Ativista, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
(Alesp), candidatura coletiva inicialmente composta de nove parlamentares
ligados à pauta dos direitos humanos –, o passado de Erika guarda lembranças
nebulosas, a ponto de a vereadora não conseguir discernir o tempo e a
cronologia dos fatos. “Perto dos 15 anos”, tenta recordar, foi expulsa de casa
pela mãe.
Aquele que conhecia como um lar
tolerante e acolhedor durante a infância foi ganhando outros traços conforme a
mãe se aproximava da igreja evangélica. A matriarca resistiu em aceitar as
mudanças na cabeça e no corpo da filha. Achava que Erika precisava ser salva. O
que a fez quando adolescente passar por uma espécie de “cura gay” não dita, com
sessões de oração e outros rituais para tentar expurgar algo.
“Quando digo ‘não dá mais, sou
travesti e vou viver como travesti’, é que sou expulsa.” Antes de morar nas
ruas, Erika chegou a viver com tios em Itu, mas o lar ali parecia ainda mais
opressor. “Eles eram da mesma igreja da minha mãe, a Congregação Cristã do Brasil.
E encaravam a religião da forma mais fanática e doentia possível. Fiquei ali
durante um tempo sendo violentada. Não houve violência física, mas polida. Fui
intimidada na minha essência, em um processo inquisitório. De rasgarem livros,
de me impedirem de ser e existir.”
Nas ruas, conheceu outras
travestis e começou o processo de hormonização. Dormiu em praças e precisou se
prostituir para sobreviver. Até que a mãe a procurou, buscando a reconciliação.
“Me disse que estava com os olhos tapados, que se pudesse me colocava no útero
de novo, para que eu vivesse a minha história diferente.” O trauma parece ter
sido superado. Atualmente, as duas têm uma relação carinhosa.
Na volta para a casa da mãe, Erika decidiu retomar os estudos. Cursou pedagogia
na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e depois gerontologia na mesma
instituição. Não terminou nenhuma das formações, mas marcou seu tempo na
universidade com a criação de cursinho pré-vestibular popular para pessoas
trans.
Nesta entrevista, realizada em seu gabinete, ela conta que foi a própria
história, marcada por dores e desafios, que a fez querer atuar na política. “Se tivesse havido políticas públicas, eu
teria sofrido menos.” Em um diálogo aberto de quase três horas, Erika
compartilhou suas memórias e planos. Falou ainda sobre o fazer político em que
acredita, e fez críticas a uma esquerda antiquada, que precisa incluir as
mulheres, o debate antirracista e as questões de gênero como prioridades.
MARIE CLAIRE Você foi a primeira
vereadora trans em São Paulo, mas também a mulher mais votada do Brasil nas
eleições de novembro de 2020. Como reagiu quando ficou sabendo desses números?
ERIKA
HILTON - Fiquei
dura. E, depois, muito feliz. Caramba, deu muito mais que certo. E que ótimo
que fui eu, que é este projeto, este corpo que conseguiu. A campanha foi
grande, com apoio midiático e artístico. Então, tinha uma probabilidade de ser
bem votada. Agora, de forma alguma pensava que fosse ser a mulher mais bem
votada de todo o país logo após a eleição de Bolsonaro. Foi uma resposta a essa
política que está posta. E a questão de ser a primeira trans para a cidade de
São Paulo, trato esse tema de uma forma um tanto quanto dicotômica. Compreendo
como fruto de uma luta das mulheres transexuais e travestis pela ocupação dos
espaços, mas também exemplifica o quanto a sociedade ainda é transfóbica e
impede que mulheres como eu cheguem aos espaços de poder.
MC Entendemos que o contexto bolsonarista causa um contraste. Uma
espécie de oposto radical, aquela lógica do antipetismo, que serve para o
antibolsonarismo. Mas o que atribui na sua pauta a esse processo das urnas?
EH - Esse antídoto ao Bolsonaro, sem sombra de dúvida.
Ser alguém que estava no contraponto extremo do que estava sendo colocado. A
linguagem que busquei e a minha história se conectam com as pessoas. E acho que
isso mostrou uma verdade no que eu estava prometendo naquela campanha e fez com
que elas se sentissem próximas de mim e parte do meu projeto político, que
tivessem confiança de ir até as urnas e eleger essa porta-voz dos interesses
delas.
MC Cientistas políticos consideram o seu mandato, por ser o de uma
mulher jovem, negra e trans, e o mandato da Bancada Ativista, por ser coletivo,
como inovação política. É nessa nova política que está o futuro?
EH - Só pode ser. A política como conhecemos é
quadrada, cafona, chata, feita da mesma maneira durante muito tempo e pensada e
formulada pelos mesmos grupos. Quando outros grupos vão se apropriando desse
lugar, o fazer político vai renascendo. A política precisa ser renovada porque
a forma hegemônica de fazer política sempre atende apenas aos interesses
dos políticos e da elite econômica do Brasil. Então, renovar a política também
é mudar a prioridade dela.
MC Quando e por que você começa a olhar
para a política como meio de atuação?
EH - Quando me
dou conta da minha história, das minhas vulnerabilidades, dos desafios que já
enfrentei. Se houvesse políticas públicas, teria sofrido menos.
MC Pode nos dar exemplos?
EH -
Quando fui expulsa de casa e não
tinha um espaço de acolhimento. Precisei dormir na calçada e viver da
prostituição. E na prostituição não tinha nenhum tipo de política que me
falasse sobre prevenção de IST [infecções sexualmente
transmissíveis], sobre direitos do próprio corpo, sobre não aceitar
nenhum tipo de violação de direitos humanos. É difícil mudar essas realidades
sem o apoio institucional. Então, começo a sonhar em usar a política como
ferramenta que mude vidas e que minimize histórias como a minha.
MC Você tinha quantos anos?
EH - 13, 14.
MC E se lembra de ter pensado em política?
EH - Minha avó materna diz que desde sempre eu dizia que queria ser
presidente do Brasil. Ela conta uma história de mim vestindo uma camisa xadrez
falando que iria ser presidente. Eu tinha, sei lá, 4 anos. E amava o horário
político. Me divertia porque na minha infância o horário político era aquele
grande circo. Eu imitava o Enéas. Amava, achava tudo.
MC Você fala da expulsão de casa com tranquilidade. É um assunto
superado?
EH - Superei o trauma porque minha mãe reconheceu o
que fez. Eu diria que foi a igreja que me expulsou, porque ela virou evangélica
ao longo da vida.
MC Não era então um lar evangélico na sua infância?
EH - Não, pelo contrário. Cresci num lar repleto de liberdade,
podendo exercer o meu gênero. Não conheço o processo de transição como a
maioria das pessoas trans porque sempre fui tratada e percebida como menina.
Não podia brincar com os meninos, minha mãe era superprotetora. Eu usava os
cabelos dela, sapatos, roupas. Isso nunca foi motivo de represália.
MC Por que será que ela tinha essa consciência?
EH - Acho que ela só me deixava ser e amava. Quando a
igreja chega, convence ela de que aquilo é um problema. Aí ela se vê precisando
salvar a minha alma.
MC Teve cura gay na história?
EH - Teve umas tentativas de expurgo da pombagira, orações na
cabeça, visita dos irmãos em casa, essas coisas, mas cura gay nunca se falou.
Mas era sim uma espécie de cura gay. E aí depois ela mesma se deu conta do que
estava fazendo, do perigo, da gravidade daquilo. Então me procurou e me
resgatou.
MC Quanto tempo você ficou nas ruas?
EH - Minhas memórias são tão bagunçadas, porque foi tudo tão
violento. Mas uns quatro, cinco anos.
MC A prostituição foi um caminho compulsório?
EH - Sem sombra de dúvida. Não tinha para onde ir. E
todos os caminhos levavam à prostituição. Um corpo cobiçado, fetichizado e que
não tem trabalho, não tem família, não é respeitado, não tem oportunidades. O
que resta é trabalhar com a prostituição para sobreviver, comer, morar, dormir,
vestir.
MC Houve acolhimento por parte das mulheres que encontrou na rua?
EH - Sim, mas também violência. E isso não diz
respeito a quem está me recebendo, mas a como a sociedade trata esses corpos.
Com elas que aprendi a tomar hormônio, a ser travesti, a me safar de situações
escrotas. Mas também houve confronto, ridicularização. Porque na rua, se você
não tem um cabelo, um peito, vira piada.
MC Como foi a reconciliação com sua mãe?
EH - Orgânica, natural, verdadeira. Partiu dela, que disse o quanto
ficou perdida, alienada, com os olhos tapados, que se pudesse me colocava no
útero de novo, para que eu vivesse a minha história diferente.
MC Sobre a população LGBTQIAP+ no contexto da pandemia: como ela
foi tratada pelos governos?
EH - Nós temos feito diligências pela Comissão de Direitos Humanos,
que presido, e temos falado com gente que era garçom, cabeleireira e fechou seu
negócio, perdeu seu emprego e foi morar nas ruas. Tenho atuado para garantir o
básico para que essas pessoas sobrevivam, um banheiro químico na praça, a água
dentro dos CREAs [Centro de Referência Especializado de
Assistência Social]. Mas era preciso um auxílio mais robusto e
contínuo, a dissolução das taxas de água e luz, socorrer as empresas para que
dessem continuidade aos seus trabalhadores. Era preciso uma política que
entrasse em acordo com a necessidade das pessoas no quesito financeiro. Houve
um aumento imenso dos itens da cesta básica, o que para mim é um absurdo.
Precisávamos ter garantido que esses preços não subissem da forma como subiram.
A gestão Paulo Guedes está influenciando na precariedade da população.
MC Qual é a sua avaliação quanto à
administração do prefeito Ricardo Nunes? Já puderam conversar?
EH - Estive no
dia 27 de junho, no Dia do Orgulho [LGBT], levando os
meus projetos. Ele me recebeu, me pareceu uma pessoa dialogável, aberta a
construir. Mas logo depois recebeu fundamentalistas dizendo que São Paulo não
teria ideologia de gênero. E ele foi um dos protagonistas desse debate aqui na
Câmara quando era vereador. Então, me pareceu uma pessoa confusa, que não sei
qual de fato é sua posição e o que sustenta entre os seus acordos. Mas a gestão
Nunes tem sido uma grande catástrofe. Eu tenho sentido ele muito mais
refratário do que o Bruno [Covas], e tenho
sentido ele vindo avançando com muito mais pressa em assuntos como, por
exemplo, as reformas administrativas, o aumento de cargos sem explicações.
MC Como avalia a administração de Jair Bolsonaro durante a
pandemia?
EH - [Ri alto] Aterrorizante?
Preocupante, criminosa, asquerosa, repugnante, terrível, destrutiva, genocida.
Tenho desespero quando olho para essa gestão.
MC Você já se sentiu silenciada no PSOL?
EH - Eu diria que nunca me deixei calar, que, nos momentos em que
tentaram, fiz valer a minha voz.
MC O PSOL é um partido machista?
EH - O PSOL tem suas ramificações machistas. Eu nunca estive em nenhuma
situação machista. Mas é perceptível quem está nos quadros, quem está nas
direções, quem está nas lideranças, nós ainda temos uma presença predominante
de homens. O que gosto, e por isso estou no PSOL, é que ele se permite fazer
autocrítica.
MC Se você tivesse os 30 anos exigidos para se candidatar ao
governo de São Paulo nas próximas eleições, formaria chapa com o Guilherme
Boulos, do PSOL?
EH - Talvez sim. Mas não olho para o Executivo como
uma vontade. Gosto muito mais do Legislativo.
MC Qual é o seu desejo?
EH - Quero ser a primeira travesti no Senado Federal.
MC E presidente da República? E a Erika de 4 anos?
EH - Quando ela pensa na responsabilidade da Presidência, fica
assustada. Eu gosto de sonhar com essa possibilidade. Mas talvez hoje, entendendo
a política e seus bastidores, não queira estar nesse lugar.
MC Em entrevista para o Roda Viva você
disse que não dá mais para termos uma esquerda que trata como eufêmico o debate
de raça e gênero num país que bate recorde de assassinato das populações
LGBTQIAP+. De que esquerda exatamente estava falando? Isso inclui seu partido?
EH -
Não, porque ele elegeu as
primeiras mulheres trans. Me refiro a uma esquerda tradicional, aquela de 1970
e 80, que achava que o debate LGBTQIA+ é um debate pequenoburguês. Os relatos
históricos do movimento LGBT dizem que a esquerda demorou para absorver nossas
pautas e entendê-las como prioritárias e centrais. Uma esquerda conservadora no
sentido de achar que precisa se voltar apenas para o combate ao capital. O
racismo e o ódio às mulheres vêm antes do capitalismo. Nós temos que ter como
prioridade o fim do capitalismo e uma recolocação de outros modelos econômicos,
mas não podemos ignorar ou tratar como menores as pautas de gênero, raça e
sexualidade.
MC Sobre a CPI da Violência contra
Trans e Travestis: o que pretende a Comissão?
EH - A
CPI vai tentar entregar um relatório que demonstre a violência contra a
população trans e travesti de São Paulo, mas também encontrar parceiros para
atuar no combate a essa violência e apontar políticas públicas efetivas para
minimizá-la.
MC Como essa violência tratada na CPI afeta você, agora que é uma
parlamentar?
EH - Tenho processado todos os ataques contra mim, e isso tem
diminuído a violência. A Justiça autorizou a quebra de 49 sigilos de contas em
redes sociais que me ameaçaram. Vamos achar todos os responsáveis.
MC Você anda com escolta?
EH - Sim, todos os dias.
MC E para escoar essa violência que chega a você, o que faz?
EH - Exercício, terapia. E tento me divertir o máximo que posso. Faço
skincare, cuido do meu corpo. Bebo porque é importante também. Fico com pessoas
que me amam. Isso faz bem, isso blinda a gente.
MC Qual é seu maior medo?
EH - A morte, a velhice. Tem uma tese de doutorado da gerontologia que se
chama “Travestis Envelhecem?”. Me parece que nós nunca temos o direito de
chegar plenas ao fim das nossas vidas. Se uma corda tem que estourar, a
primeira é a nossa. Isso me dá pânico.
Marie Claire